Poemas de Mauro Jorge editados na revista Cult de Outubro de 2004.
Apresentação por Cláudio Willer
(...)Já a leitura de Mauro Jorge Santos nos faz respirar outros ares. Seu movimento é ascendente. Um místico, dirão. Sem dúvida: assim como Jacob Boehme enxergava o Cosmos em um prato de estanho, ele vê o universo, a Presença, em acordes de John Coltrane. É poesia de aproximação ao sagrado, experimentado como algo ofuscante. Multiplica o famoso todo anjo é terrível de Rilke: É em carmim/ urdido/ que teu olhar aterra. Mas seu Anjo das tormentas também poderia ser aquele de Paul Klee, comentado por Walter Benjamin, que, de costas, conduzidopor um vendaval, vai contemplando as ruínas da História.
O ensaísta italiano Roberto Calasso abre seu recente A Literatura e os Deuses (Companhia das Letras, 2004 – a edição original é de 2001) com a seguinte observação: Os deuses são hóspedes fugidios da literatura. Deixam nela o rastro de seus nomes. Mas logo a desertam também. Toda vez que um escritor esboça um texto, tem de reconquistá-los. Notem que Calasso se refere a os deuses; aqueles do paganismo, da realidade impregnada pelo sagrado. Sua reaparição equivale a experiências de espanto, de uma luz que cega, como em Hölderlin, da manifestação de outra linguagem, pura forma, como em Mallarmé. De modos diferentes, Rafael Edler e Mauro Jorge Santos registram a fugas dos deuses, e a reparição de seus rastros. Na próxima edição, outros poetas e outras dicções. Não esqueçam que estamos colocando extras de cada poeta selecionado no site de Cult. (Cláudio Willer)
MAURO JORGE SANTOS
Via Lasciva
"nessas linhas de tua palma destra te manifesta os acidentes do caminho humano" (Bartolomé Leonardo de Argensola) do interior da terra inculta o apunhalado atravessa a praça principal
exausto e ofuscado de sonhar com o Canto da Iniciatriz que enlouquece ao ouvido expectante
esculpido pela agonia a ira toma sua face as mãos pesam – busca inútil e ígnea –
cães a sua volta sem motivo voltam-se uns contra os outros o ar é quente irrespirável inflama tudo que o cruza
- danação no encalço -
no pináculo da sombra, cala-se o apelo do vento
lágrimas, talvez, mão destra não enxuga
adentra a comunicação total das almas
Senhor, por Tua arte flui liames e meandros da Luz
"A alma, desprevenida, canta e só tu, meu Deus, me concedes a inocência!" (Ruy Cinatti)
Anjo das tormentas
"eu sei atravessar as fronteiras das coisas" (Cesariny)
os pescadores fecham a saída e a entrada da aldeia
encurralam o anjo mas ele invoca os ventos
os pescadores são muitos mas não acuam o anjo agora não por restarem poucos mas por ninguém ousar aproximar-se do mistério de sua fúria
o anjo era o terror de cada um - um terror incógnito - como uma voz sem corpo deslocada que chama ao lado contrário do ser
Harpa-cinematógrafo
para Sugawa (pelo calor negro de sua noite) I
na janela
toco a imagem música en train de se faire
a emulsão lápis lázuli, o sol obscuro, interior, filtrado pelas romãs
um licorne gravita na rosa dos ventres
os pólos extrusivos da alma
correnteza subterrânea vertigem a partir dos pés
brilha, basta, tacitamente.
púrpura e violeta visual
As tintas, as mandalas e a treva.
É em carmim urdido que teu olhar aterra
II
reluz nos olhos o ouro ensangüentado do sol
gume em flama
a liberdade primeira é renascer para a guerra
mistério da mortificação
um ébrio que quanto mais bebe menos se comove disciplinado volta à casa ao pôr-do-sol o quadro que Hopper não pintou:
a reflexão bêbada das traições, da solidão rasgada
relembra a parte que dói; a parte que explode
fronteira
Coltrane não tornou, em sua obras finais, os ângulos ásperos somente pela imensa dor nos dentes mas por uma confluente ascensão nos dedos no ataque - o sangue, a saliva e o ar -
elipse-dínamo e um apelo aberto entre ser, criação e a Presença
Véspera dos oráculos bélicos
corte ao meio as palavras várias vezes sinta a fome de silêncio, tranqüila no esôfago mantenha os sinais ilegíveis frature-os
sob a lua minguante conflua às especiarias do espírito
na polissemia das estradas espinhosas; o oásis ofuscado pelas mãos que constroem o escuro
um homem não precisa de nada além desta fronteira de fogo
divida a seiva dos apóstolos, fale ao luminoso augure tua vereda da aurora
a palavra surge para luzir e libertar dela mesma fogo solitário fechado em cruz fronteira celeste
quando a Graça se vai condoer é apenas entender
espelho de Sophia; pressentimento crepuscular
"PUNHAIS O que brilha ao sol da batalha. O do assassino, tinto de sangue. E o olhar da minha bem amada." (O Jardim das Carícias - tradução de Adalgisa Nery) segui a trilha de teus vestígios para a noite
viajei por tuas estradas, através da máscara de teu olhar, conheci teus convivas e teus tiranos memorizei a vibração e o ritmo de tua conversa
tua não eras tua alma que não se revelava no cotidiano, - enigma noturno -
ali teu esboço: teu corpo deitado dilatado
um eco; sombra de vôo indecifrável pois teus motivos não são tua presença
Antes que o vento mude...
I "Desconheces que sou grande Porque eu vim da terra pura que pisas Porque sou a terra que amas." (Adalgisa Nery)
Não é na tua respiração ou na tua mão a fremer
é no contato dos olhos em transe que mergulho, no globo curtido em sal - lágrimas que guardamos - coriscos de sangue lápis-lazuli sobre pérola em Graça pássaro ciano no cerco de fogo
seios que sabem à seiva das oliveiras abismos maturados em insônia vertem toda inteligência dos pesadelos todo artesanato de heresia e traição
confluência das Fortunas os metais estão abertos circulam por nossos corpos ininterruptos
olhe aqui afunde teus dedos na terra beija a convulsão do solo sangrento em que nasci sinta em um minuto de luta o extremo dos corpos - fruto luminoso entre céu e terra -
II
"Oferenda, teu nome é liberdade" (Cecília Meireles)
mosto no rosto, pétala altiva que alço como cálice
convida-me para a prospecção dos fogos, cortesã dos olhos raiados de aurora,
eu te peço: - preserva esta desesperada graça este nome que enlouquece este silêncio que nos consome
este sopro em eco entre nós que é só o que me redime o corpo aberto, grave e devastado
- poesia como súplica, pedido de redenção -
Mauro Jorge Santos é de São Paulo. Nascido em 1974. Publicou Casa de Veraneio & Cobra Coral (2000) e Cão sem rosto no lado B do horizonte (2003), ganhador do I Concurso Universitário Nacional de Literatura.
1 comentário:
Poemas de Mauro Jorge editados na revista Cult de Outubro de 2004.
Apresentação por Cláudio Willer
(...)Já a leitura de Mauro Jorge Santos nos faz respirar outros ares. Seu movimento é ascendente. Um místico, dirão. Sem dúvida: assim como Jacob Boehme enxergava o Cosmos em um prato de estanho, ele vê o universo, a Presença, em acordes de John Coltrane. É poesia de aproximação ao sagrado, experimentado como algo ofuscante. Multiplica o famoso todo anjo é terrível de Rilke: É em carmim/ urdido/ que teu olhar aterra. Mas seu Anjo das tormentas também poderia ser aquele de Paul Klee, comentado por Walter Benjamin, que, de costas, conduzidopor um vendaval, vai contemplando as ruínas da História.
O ensaísta italiano Roberto Calasso abre seu recente A Literatura e os
Deuses (Companhia das Letras, 2004 – a edição original é de 2001) com
a seguinte observação: Os deuses são hóspedes fugidios da literatura.
Deixam nela o rastro de seus nomes. Mas logo a desertam também. Toda
vez que um escritor esboça um texto, tem de reconquistá-los. Notem que
Calasso se refere a os deuses; aqueles do paganismo, da realidade
impregnada pelo sagrado. Sua reaparição equivale a experiências de espanto, de uma luz que cega, como em Hölderlin, da manifestação de outra linguagem, pura forma, como em Mallarmé. De modos diferentes,
Rafael Edler e Mauro Jorge Santos registram a fugas dos deuses, e a
reparição de seus rastros. Na próxima edição, outros poetas e outras dicções. Não esqueçam que estamos colocando extras de cada poeta selecionado no site de Cult. (Cláudio Willer)
MAURO JORGE SANTOS
Via Lasciva
"nessas linhas de tua palma destra
te manifesta
os acidentes do caminho humano"
(Bartolomé Leonardo de Argensola)
do interior da terra inculta
o apunhalado
atravessa a praça principal
exausto e ofuscado
de sonhar
com o Canto da Iniciatriz
que enlouquece
ao ouvido expectante
esculpido pela agonia
a ira toma sua face
as mãos pesam
– busca inútil e ígnea –
cães a sua volta
sem motivo
voltam-se uns contra os outros
o ar é quente
irrespirável
inflama tudo que o cruza
- danação no encalço -
no pináculo da sombra,
cala-se o apelo do vento
lágrimas, talvez,
mão destra não enxuga
adentra a comunicação total das almas
Senhor, por Tua arte
flui
liames e meandros da Luz
"A alma, desprevenida, canta
e só tu, meu Deus, me concedes a inocência!"
(Ruy Cinatti)
Anjo das tormentas
"eu sei atravessar as fronteiras das coisas" (Cesariny)
os pescadores fecham
a saída e a entrada
da aldeia
encurralam o anjo
mas ele invoca os ventos
os pescadores são muitos
mas não acuam o anjo agora
não por restarem poucos
mas por ninguém ousar
aproximar-se do mistério de sua fúria
o anjo era o terror de cada um
- um terror incógnito -
como uma voz sem corpo
deslocada
que chama
ao lado contrário do ser
Harpa-cinematógrafo
para Sugawa (pelo calor negro de sua noite)
I
na janela
toco a imagem
música en train de se faire
a emulsão lápis lázuli,
o sol obscuro, interior, filtrado pelas romãs
um licorne
gravita
na rosa dos ventres
os pólos extrusivos da alma
correnteza subterrânea
vertigem a partir dos pés
brilha, basta, tacitamente.
púrpura e violeta visual
As tintas, as mandalas e a treva.
É em carmim
urdido
que teu olhar aterra
II
reluz nos olhos
o ouro ensangüentado
do sol
gume em flama
a liberdade primeira
é renascer para a guerra
mistério da mortificação
um ébrio
que quanto mais bebe
menos se comove
disciplinado
volta à casa ao pôr-do-sol
o quadro que Hopper
não pintou:
a reflexão bêbada
das traições, da solidão rasgada
relembra a parte que dói;
a parte que explode
fronteira
Coltrane não tornou, em sua obras finais,
os ângulos ásperos
somente pela imensa dor nos dentes
mas
por uma confluente ascensão
nos dedos
no ataque
- o sangue, a saliva e o ar -
elipse-dínamo e um apelo aberto
entre ser, criação e a Presença
Véspera dos oráculos bélicos
corte ao meio as palavras várias vezes
sinta a fome de silêncio, tranqüila no esôfago
mantenha os sinais ilegíveis
frature-os
sob a lua minguante
conflua
às especiarias do espírito
na polissemia das estradas espinhosas;
o oásis ofuscado
pelas mãos que constroem o escuro
um homem não precisa
de nada além desta fronteira de fogo
divida a seiva dos apóstolos,
fale ao luminoso augure
tua vereda da aurora
a palavra surge para luzir
e libertar dela mesma
fogo solitário fechado em cruz
fronteira celeste
quando a Graça se vai
condoer é apenas entender
espelho de Sophia; pressentimento crepuscular
"PUNHAIS
O que brilha ao sol da batalha.
O do assassino, tinto de sangue.
E o olhar da minha bem amada."
(O Jardim das Carícias - tradução de Adalgisa Nery)
segui a trilha de teus vestígios para a noite
viajei por tuas estradas, através da máscara de teu olhar,
conheci teus convivas e teus tiranos
memorizei a vibração e o ritmo de tua conversa
tua não eras tua alma
que não se revelava no cotidiano,
- enigma noturno -
ali teu esboço:
teu corpo deitado
dilatado
um eco; sombra de vôo indecifrável
pois teus motivos
não são tua presença
Antes que o vento mude...
I
"Desconheces que sou grande
Porque eu vim da terra pura que pisas
Porque sou a terra que amas."
(Adalgisa Nery)
Não é na tua respiração
ou na tua mão a fremer
é no contato dos olhos em transe
que mergulho,
no globo curtido em sal
- lágrimas que guardamos -
coriscos de sangue
lápis-lazuli sobre pérola em Graça
pássaro ciano no cerco de fogo
seios que sabem à seiva das oliveiras
abismos maturados em insônia
vertem toda inteligência dos pesadelos
todo artesanato de heresia e traição
confluência das Fortunas
os metais estão abertos
circulam por nossos corpos ininterruptos
olhe aqui
afunde teus dedos na terra
beija a convulsão do solo sangrento em que nasci
sinta em um minuto de luta
o extremo dos corpos
- fruto luminoso entre céu e terra -
II
"Oferenda, teu nome é liberdade"
(Cecília Meireles)
mosto no rosto,
pétala altiva
que alço como cálice
convida-me
para a prospecção dos fogos,
cortesã
dos olhos raiados de aurora,
eu te peço:
- preserva esta desesperada graça
este nome que enlouquece
este silêncio que nos consome
este sopro em eco entre nós
que é só o que me redime
o corpo aberto, grave e devastado
- poesia como súplica,
pedido de redenção -
Mauro Jorge Santos é de São Paulo. Nascido em 1974.
Publicou Casa de Veraneio & Cobra Coral (2000) e Cão sem rosto no
lado B do horizonte (2003), ganhador do I Concurso Universitário Nacional de Literatura.
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